BAHIA

VOZES POP RUA – Pandemia agravou extrema pobreza em população que já vivia em situação de vulnerabilidade

Análise da coordenadora do Corra para o Abraço, Trícia Calmon, revela que a pandemia agravou situação de extrema pobreza e aumentou o número de pessoas em situação de rua

A pandemia e os reflexos na população em situação de rua reforçaram ainda mais o compromisso de Trícia Calmon, que há 20 anos milita nos movimentos sociais, em defesa dessa parcela da população. Atualmente, coordenadora-geral do programa Corra pro Abraço, ligado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia –  SJDHDS, Trícia é cientista social e analisa que problemas complexos não envolvem soluções simples e que é preciso ir à luta para abater mazelas que estão pautadas em relações de poder.

Integrante do Conselho Estadual de Políticas de Drogas, mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social, além de especialista em Políticas Públicas de Gênero e Raça, Trícia Calmon é a entrevistada da série Vozes Pop Rua. A cientista social conta como o programa vem desenvolvendo estratégias de inclusão nos serviços e políticas públicas, mediando o acesso à Justiça. Também observa que a pandemia deixa danos físicos e passivos sociais severos que acometem em maior grau as pessoas em situação de rua.

Trícia Calmon, coordenadora-geral do programa Corra pro Abraço, ligado à Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia – SJDHDS

O que é o Corra pro Abraço e quais atividades têm desenvolvido antes e durante a pandemia na rua?

O Corra pro Abraço é um programa de redução de danos do Governo do Estado da Bahia, através da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social – SJDHDS, executado em parceria com as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, Comunidade Cidadania e Vida e também a Cipó Comunicação Interativa. Tem como objetivo promover cidadania e garantir direitos de pessoas que fazem uso abusivo de drogas em contextos de vulnerabilidade ou são afetadas por problemas relacionados à criminalização das drogas, baseado nas estratégias de redução de danos físicos e sociais.

Estas estratégias aproximam seus beneficiários das políticas públicas existentes, uma vez que o estigma e as desigualdades interferem em suas capacidades de busca, acesso e acolhimento pelos serviços públicos. O papel do programa Corra pro Abraço, em grande medida, é promover uma maior aproximação das pessoas que fazem uso de drogas a serviços públicos, prioritariamente nas áreas de saúde, assistência social, educação e justiça.

O Corra pro Abraço tem alcançado sucesso no acolhimento a pessoas em situação de rua e juventude na capital, levando o cuidado para os seus espaços de convivência, promovendo escutas sensíveis, aprofundando vínculos, desenvolvendo estratégias de inclusão nos serviços e políticas públicas das áreas de Saúde, Assistência Social e Cultura, assim como mediando o acesso à Justiça.

*Foto tirada antes da pandemia

Como sua trajetória de vida a levou a fazer parte da equipe e qual seu papel neste momento?

Tenho 20 anos de militância nos movimentos sociais – inicialmente, no movimento estudantil, depois no movimento negro e de mulheres negras. Como cientista social, eu logo entendi que não devemos buscar soluções simplistas para problemáticas complexas, porém, tornar esses caminhos e soluções factíveis e palpáveis sempre foi algo que persegui.

As minhas referências políticas e de vida sempre me inspiraram a buscar uma atuação consequente e que fizesse sentido para mim e para as outras pessoas. Acredito que por isso me tornei consultora, atuando na cooperação internacional, e, por fim, gestora. Fiquei atenta às grandes perguntas que a vida me fez e intrigada em descobrir se as respostas disponíveis estavam corretas.

Um divisor de águas para mim advém de uma constatação aparentemente simples: aquelas mazelas que estão pautadas em relações de poder não serão abatidas sem conflito, a boa vontade de alguns não dará conta e a de todas as pessoas não virá. Daí, eu acalmei meu coração e soube que a mudança reside na luta, na construção da autonomia e, portanto, na descolonização das mentes e dos corpos.

Creio que é nesse lugar que a minha trajetória se encontra com o Corra pro Abraço. Eu, enquanto gestora na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Governo do Estado da Bahia – SEPROMI, pelos idos de 2013, discutia com Emanuelle Santos Silva, da Secretaria Estadual de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, o Plano Plurianual do Governo do Estado da Bahia e a alocação de recursos do Fundo Estadual de Combate e Erradicação à Pobreza – FUNCEP nas ações intersetoriais de combate ao racismo.

Mais tarde, em 2015, contribui com um plano para pensar geração de renda e progressão de escolaridade no Corra pro Abraço, que deu base ao que temos nessa área até hoje. E, em 2016, passei a integrar a equipe de Coordenação [do programa], assumindo a Coordenação Geral em 2018 até então.

*Foto tirada antes da pandemia

O que mudou no território em que atua e como você avalia os impactos destas mudanças para a população de rua?

O cotidiano do Corra pro Abraço é lidar com situações limites de empobrecimento e miserabilidade, ao mesmo tempo em que é encontrar acolhimento e potência de vida onde parece haver pouco para dar. Por isso mesmo não houve como o Corra Rua se retirar de campo na segunda quinzena de março de 2020, quando eclodiu a pandemia do novo Coronavírus. Naquele momento não sabíamos se a evolução da pandemia nos permitiria permanecer em campo, por isso traçamos um plano de atuação rápida em todos os nossos territórios para que as pessoas tivessem conhecimento do que estava acontecendo e das medidas básicas – isso para o Corra Rua e Juventude.

O serviço nas audiências de custodia ficou suspenso e a equipe cuidou das orientações das pessoas acompanhadas remotamente. As ruas estavam vazias e o comércio fechado. Apenas a população em situação de rua permaneceu e havia muita sede e fome em um nível que não costumávamos ver. Há um problema na política de segurança alimentar e são as doações de pessoas e instituições religiosas nas praças que têm dado conta de sanar a fome. Naquela semana, até estes não estavam chegando.

O programa redobrou a doação de água mineral, kits de higiene e lanche que passou a ser distribuído em todos os campos de forma temporária. Colocou à disposição todos os seus recursos e organizou, logo na primeira semana, uma campanha de arrecadação que tem sido fundamental, uma vez que apenas os recursos do programa não dariam conta da demanda.

As oficinas pararam de ocorrer e intensificamos a comunicação preventiva e a distribuição de insumos. Apenas em julho retomamos a realização de oficinas de arte educação nas ruas, porque estas se demonstraram mais eficazes para organizar o diálogo educativo inclusive no contexto de reabertura de comércio e serviços. Foi notória, ao longo do tempo, uma ampliação do número de pessoas em situação de rua. Sem trabalho formal e informal, não foi possível para muita gente manter os alugueis e custos de viver em uma casa.

Há um relato ou situação mais marcante no seu trabalho na rua nesse contexto de Pandemia que você possa compartilhar?

As pessoas, sobretudo no início, desacreditavam da potencial letalidade do Coronavírus e um dos argumentos era muito difícil de refutar: são pessoas que sobrevivem a toda sorte de mazelas e falta de acesso à saúde. Com ou sem pandemia, sobrevivem ao frio, chuva, ratos, baratas, esgotos, fome, sede. Convivem muitas vezes sem cuidado com doenças como a tuberculose, sífilis, HIV/AIDS e, no caso das mulheres especificamente, a estupros e abortos espontâneos desassistidos. Além das humilhações, violências físicas e ameaças de morte. Há ainda a tortura de nunca dormir (impunemente) com os dois olhos fechados.

Não há como refutar essa realidade, mas também é real a letalidade do vírus, principalmente para aquelas pessoas que tenham menos condições de praticar as medidas básicas de prevenção, que são as pessoas mais empobrecidas. A pandemia vem deixando danos físicos e passivos sociais severos que vão acometer justamente essa parcela da população. Faltou até o trabalho informal e o subemprego. Os recursos da Lei Orgânica da Assistência Social – LOAS sendo rifados todos os dias nos noticiários para fins de manobras políticas.

*Foto tirada antes da pandemia

Quais as suas expectativas e perspectivas para um novo normal no futuro e pós pandemia?

No que diz respeito à população mais vulnerabilizada, mais empobrecida, o antigo normal já era muito ruim. Trata-se de um segmento populacional com baixíssima escolaridade, que desconhece o emprego formal; uma juventude com a expectativa de vida muito baixa, ou seja, a receita certa para refrear o desenvolvimento do nosso país.

Atuar na redução das desigualdades sociorraciais e econômicas já era condição sine qua non (fundamental, indispensável) para mudar a triste realidade brasileira, mas a pandemia escancarou de uma forma que nem sabíamos que seria possível. A renda do brasileiro que recebeu o auxílio emergencial aumentou em relação ao período pré-pandêmico, isso significa que vamos muito mal: em meio à crise econômica, por conta de R$ 600,00 que nem todos receberam, os dados socioeconômicos perceberam esse fenômeno. A nossa linha de base era e é muito baixa. Com a pandemia, muitos mitos foram desfeitos, como a suposta “inclusão digital de todos”, por exemplo.

Diante disso tudo, só podemos prospectar dois caminhos daqui para frente: a) o avanço de projetos políticos que se preocupam com o país operando na reparação dessas desigualdades sob pena de assistir ao definitivo colapso de toda sociedade brasileira, ou b) o fortalecimento de projetos políticos que acreditam numa sociedade não só desigual, mas quebrada, sem pontes de solução cidadã e democrática. Precisamos envolver todas as pessoas nesse debate e disputar para que vença um projeto de sociedade capaz de fortalecer as agendas da garantia de direitos e da dignidade humana.

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